segunda-feira, 31 de maio de 2010


Posso te carregar comigo? - não falo de sentimento, coração, porque nessa etapa da vida apenas isso já não nos satisfaz -. Falo de corpo, de mãos e pernas entrelaçados, de suor, de desejo e poder. Carne, osso, gozo, prazer. Física apenas, tato, paladar. Não te quero assim apenas por uma noite, apenas por um momento. Stay here. Que eu faço o teu café, que eu dou o teu pão e o teu chão. Eu te sirvo, eu te mantenho. Só preciso te tocar, te ter todos os dias pra não ter que ter outro sabe, que eu não deseje como você. Quero algo constante, duradouro e vivo. Assim como o que sentimos agora juntos e entrelaçados. Quero tudo a pele, a tua pele. Ao teu gosto, entende?



''Ao navegante-mor,

É, parece que nosso barco tá mesmo furado, e furado de um jeito que nem todos os remos e remendos do mundo nos farão navegar como antes.
Me dói dizer isso, mas desisto. Desisto de ti, desisto de nós.
Sinto muito, mas minhas doses de amor já evaporaram há muito, já se esvaíram pelos poros do barco. Agora só me resta saltar para um outro, em busca de um novo litoral.

Com todo meu sentimento, T.''

Eu sou uma bailarina e cheguei aqui sozinha, não pergunte como eu vim porque já não sei de mim. Do meu circo eu fui embora, eu sei que minha família chora; não podia desistir, se um dia como um sonho ele apareceu pra mim. Tão brilhante como um lindo avião, chamuscando fogo e cinza pelo chão. De repente como um susto num arbusto logo em frente aconteceu uma explosão, afastando a minha gente. Mas eu não quis ir embora, eu não podia ir embora, como se nascesse ali um amor absoluto pelo homem que eu vi. Poderia lhe entregar meu coração, alma, vida e até minha atenção? Mas vieram as sirenes e homens falando estranho, carregaram meu presente como se ele fosse um santo. Dirigiam um carro branco e num segundo foram embora. Desse dia até agora, não sei como, não pergunte, procuro por todo canto. Astronauta diz pra mim, cadê você? Bailarina não consegue mais viver..

Tiê.

O Homem do Pijama Azul


Penso tê-lo visto uma única vez, talvez no final de 1971, quando o peso dos quase 80 anos de idade já lhe prenunciavam o triste desfecho. Eu tinha apenas sete anos – e esta é uma das minhas mais remotas lembranças de infância. Sentado na cama, completamente cego, vestido com o pijama azul, o velho João de Lira Cavalcante pôs-me a mão na cabeça, passou os dedos nos meus então vastos cabelos infantis e depois sorriu, mirando o nada. Não lembro se falou algo, se me perguntou alguma coisa, se fez algum comentário específico. Só guardei daquele momento alguns rápidos lampejos, uma memória enevoada, uma reminiscência cheia de brumas, bem típica daquela amnésia natural que caracteriza as recordações adultas a respeito dos primeiros anos de vida.

O pijama de meu avô era realmente azul ou o tingi depois mentalmente, reconstruindo a imagem de acordo com os tons suaves de minha cor favorita? Seus dedos se demoraram de fato nos meus cabelos ou apenas desejei que isso houvesse acontecido assim, forjando inconscientemente uma lembrança física posterior que confortasse o sentimento de ausência? Ao tentar reproduzir o passado vivido, terei recuperado aquele momento com as tintas involuntárias da idealização? Não tenho respostas precisas para tal. Essas armadilhas são próprias das reminiscências pessoais – sempre seletivas e construídas -, o que faz da narrativa do passado necessariamente um jogo de esconde-esconde entre a memória, o esquecimento e os mistérios da subjetividade de quem a viveu.

(Lira Neto)

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E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores.