segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Homem do Pijama Azul


Penso tê-lo visto uma única vez, talvez no final de 1971, quando o peso dos quase 80 anos de idade já lhe prenunciavam o triste desfecho. Eu tinha apenas sete anos – e esta é uma das minhas mais remotas lembranças de infância. Sentado na cama, completamente cego, vestido com o pijama azul, o velho João de Lira Cavalcante pôs-me a mão na cabeça, passou os dedos nos meus então vastos cabelos infantis e depois sorriu, mirando o nada. Não lembro se falou algo, se me perguntou alguma coisa, se fez algum comentário específico. Só guardei daquele momento alguns rápidos lampejos, uma memória enevoada, uma reminiscência cheia de brumas, bem típica daquela amnésia natural que caracteriza as recordações adultas a respeito dos primeiros anos de vida.

O pijama de meu avô era realmente azul ou o tingi depois mentalmente, reconstruindo a imagem de acordo com os tons suaves de minha cor favorita? Seus dedos se demoraram de fato nos meus cabelos ou apenas desejei que isso houvesse acontecido assim, forjando inconscientemente uma lembrança física posterior que confortasse o sentimento de ausência? Ao tentar reproduzir o passado vivido, terei recuperado aquele momento com as tintas involuntárias da idealização? Não tenho respostas precisas para tal. Essas armadilhas são próprias das reminiscências pessoais – sempre seletivas e construídas -, o que faz da narrativa do passado necessariamente um jogo de esconde-esconde entre a memória, o esquecimento e os mistérios da subjetividade de quem a viveu.

(Lira Neto)

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E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores.